(Por favor não me odeiem por falar mal do filme)
O polêmico filme, Joker, finalmente teve sua estreia (na
qual algumas pessoas realmente esperavam a ocorrência de tiroteios), e me
deixou com uma certa ideia que queria desenvolver. A obra consiste de uma grande reimaginação do
personagem, não encontramos o mesmo Coringa arqui inimigo do Batman, gênio do
crime, que tem milhares de seguidores a sua disposição, e sempre um novo plano
para destruir a cidade. Muito pelo contrário, essa é a história de origem que
acompanha um fracassado, sem amigos, amantes, dinheiro ou qualquer poder. Ou
seja grandiloquência substituída pela mais intima e mundana visão desse
miserável solitário, e da sociedade que o quebrou.
(did you miss me?)
Para começar mais com o assunto da discussão, eu carrego uma
grande certeza que obras de ficção intrinsicamente contem temas. Amor, ódio,
pobreza, guerra, desigualdade, não importa o gênero em que se passa a
narrativa, a obra inevitavelmente vai refletir alguma grande ideia ou questão
da existência humana. Não é exatamente relevante a intenção do autor, saber se
ele tinha necessariamente uma mensagem especifica em mente, a mera escolha de
eventos, e como tais serão demonstrados, já claramente reflete um conceito.
Característica a qual eu considero ideal, uma grande obra de ficção é precisamente
aquela que nos faz pensar. Realiza isso, principalmente por meio da
apresentação de uma nova visão de mundo, trazendo a perspectiva, questionamento,
desafiador quanto a nossa realidade. Nesse aspecto, a temática de Joker, se
encontra meu problema.
A mensagem central em Joker é claramente um fator presente, muitos
de seus elementos voltam para uma particular noção. Esta é uma história sobre
os excluídos da sociedade, nunca notados, nem ouvidos em seus problemas. Se
passa numa opressiva cidade socialmente em ruinas (literalmente lotada de lixo,
por uma greve de garis), aonde a realidade consiste de viver sobre o arbítrio
do mais forte. Terror mora nas ruas com uma violência crescente, elites
corrompidas ocupam o governo, sendo a ultima coisa na mente delas, a empatia
com os trabalhadores. Na maior parte do tempo, políticos estão contribuindo e
lucrando com a desgraça da cidade. Sua tese se apresenta no grande discurso ao
final, aonde nosso protagonista relata a cidade enlouquecedora lá fora, que
unicamente pode levar um homem a pirar. Não existe razão ou mérito em se
importar com os outros, ou realmente a mera possibilidade de agir como bom
cidadão. Todos estão cercados por uma realidade que não entendem, a qual nem
liga para sua dor. De certa forma a resposta a situação é a piada, em abraçar destruição,
realizar atos de indescritível violência aleatória quanto ao mundo em volta.
Talvez os inúteis feitos amortizem a dor, tenham proposito, mas seus resultados
e consequências são completamente irrelevantes.
Sinceramente, quanto ao fato de Joker escolher retratar
dessa forma especifica a sociedade, como inferno existencial de
desconhecimento, e aniquilação niilista sem propósito, não consigo achar
qualquer objeção. Não existem certos ou errados quando a ideia de mundo que sua
obra advoga. No entanto, o método de exploração de tal conceito deixa muito a
desejar.
Primeiro, meramente reproduzir um tópico não significa
exatamente desenvolve-lo. Esta é uma fraqueza presente em muito da ficção dita “adulta”.
Delimitando a questão, eventos nessas obras referenciam ideias de racismo,
descriminação, pobreza, opressão, amor. Mas na mesma medida que os trabalhos escolhem
precisamente circunstancias as quais podem relacionar a questões universais,
estas não estão dizendo, elaborando nada sobre o assunto. Um exemplo permite
entender melhor o que quero dizer. Joker com seu método de contar a narrativa,
e ambíguo final, apresenta claramente um questionamento sobre real x
imaginário. Seria toda nossa narrativa uma ilusão particularmente elaborada do
protagonista, nos convidando a duvidar dos eventos do filme, e da possibilidade
de separar a realidade da imaginação. Da mesma forma que o tópico está ali, ele
deliberadamente não está sendo trabalhado em cima. Não ganhamos uma nova
apreciação ou muito que pensar, na busca dessa interpretação, como uma não
convencional narrativa, aonde é possível duvidar de qualquer evento. Claro com
certeza a ideia está presente, mas quase que desaparece no Background, se torna
irrelevante por quão pouco acaba importando.
(Ok, eu realmente adoro vários dos memes que saíram daqui)
Própria reprodução é uma forma extremamente insatisfatória
de abordar temas em ficção. Tal parte de um pressuposto de um certo naturalismo,
o qual consiste de simplesmente reproduzir, imitar características do real, supostamente
mostrar eventos como o são, não os conectando diretamente a mensagens, ou exploração
de tópico. Se trata de uma tentativa de normalizar temas, não comentando
diretamente sobre eles, pois o autor está simplesmente retratando eventos, como
“realmente são”, tirando o foco que existe um assunto por trás. Quando para mim
a própria tentativa de normalização da temática, de agir como se estivesse
meramente integrada a eventos neutralmente detalhados perde o ponto de criação
ficcional. Tudo num trabalho é completamente arbitrário, não tem qualquer
logica ou razão de ser, além de um ato de vontade do criador, que escolheu que
fosse assim. Por isso considero que o autor deveria tomar vantagem desse fato,
realizando e criando sua historia de forma não neutra, mas escolhendo
especificamente o que vai favorecer sua mensagem e ideias.
Uma alternativa
superior a reprodução, que realmente confronta, apresenta visões e opiniões,
sobre o tópico que o autor está enfrentando é a realização disto por meio de
propaganda. Joker é exemplo claro disso, quanto a suas demais discussões. O
filme não consegue meramente apresentar um questionamento sobre a validade de
existência, possibilidade de felicidade, ou alegria nesse mundo. Permitir ao próprio
público chegar em suas próprias conclusões, e determinações sobre os assunto. Não,
desde o começo o filme nunca para de gritar aos 4 ventos como tudo apresentado
é a mais absoluta verdade, dando incontáveis exemplos. Parece uma dedicação
pessoal que cada personagem toma, em tornar a vida do protagonista um inferno,
crianças arbitrariamente o agridem por uma placa, o chefe e colegas no serviço
farão de tudo para mostrar que o desprezam, caras aleatórios no metro partiram
pra bater nele sem razão alguma. O mundo se consiste apenas de caricaturas de
crueldade e más intenções prestes a cruzar o caminho de um homem e arruína-lo.
Arthur Fleck é a oposição, e contraponto temático, a
tendência que tentei detalhar acima, do mundo numa batalha de morte para
mostrar quão horrível pode ser. O filme faz um esforço em demonstrar como (bem
no fundo) ele é bem intencionado, apesar de sempre reagir absurdamente. Arthur
realmente acredita em sua missão especial, o dever de fazer as pessoas rirem,
acharem mais felicidade e alguma consolação no mundo. Tal realização, que na
verdade será sempre impossível para ele. Não importa quantas vezes apareça em
Talk Shows, assista incontáveis programas de comedia toda noite, quebre a
cabeça pensando e elaborando piadas, ele simplesmente não consegue entender.
Sozinho e incapaz de formar relacionamentos, as pessoas terminam como um
completo mistério, apresentações, esforço e desejo de trazer alegria, não podem
romper sua barreira para o outro. Tentar realmente sair de sua percepção,
imaginar o que causaria risadas, graça, o que é essa alegria que a audiência
sente, é completamente impossível nessas condições.
(Let's put a smile on this face)
O protagonista em uma aparente luta contra o mundo, seus
ideais completamente o contradizendo, é na verdade uma boa formula, e traz
ótimas possibilidades de conflito. Infelizmente o contraponto e perspectiva
única que Arthur apresenta não funcionam, em decorrência de não estarem
baseadas em absolutamente nada. A inspiração do personagem no relacionamento
com sua mãe, ela tendo previamente dito que alguém com uma condição assim
nasceu para gerar mais felicidade, e risos no mundo, é revelada como mentira
cruel. Descobrimos que essa relação familiar é na verdade uma fonte de imensa
perversidade, a mãe sendo uma lunática, que inventa ilusões e delírios para o
filho, e que já foi presa por permitir que sua criança seja agredida.
Seu sonho de se tornar um grande comediante, como o
apresentador de TV, Bill Murray, com o qual o personagem é obcecado, também é
destruído virando um enorme pesadelo. Ao finalmente ver seu desejo realizado,
em ter o clipe de sua apresentação aparecendo no programa, ela está ali para
ser zombada, menosprezada e humilhada pelo apresentador. E tudo isso por uma
risada de poucos segundos, pelo prazer em chamar suas tentativas de patéticas. Não
há algo baseando a ideologia do protagonista, um sistema de ideais e fatos, que
justificam sua mentalidade e dialogam com a mensagem que o filme quer passar. Logo
a dialética e interação de sua ideia principal, com Arthur acaba bem mais
superficial do que deveria. O que junto de um filme que tem enorme dificuldade
em variedade de sentimentos, momentos que não voltam ao mesmo estado de desesperança
e perversidade, acabam o prejudicando muito.
(Eu sinceramente não sei se o personagem está chorando em vários momentos em que aparece rindo)
Existe uma visão de sociedade e mundo claras ocorrendo, a
qual está encapsulada no monologo final do principal, este simbolicamente como
cumulo de sua evolução. No entanto o filme não parece simplesmente contente em
afirmar essa ideia, mas precisa gritar, espernear e ter a existência e
realidade dando voltas e piruetas astronômicas para confirmar o quanto está
correto no que decide dizer.
A constante, e inescapável volta para confirmação do mesmo
ponto de vista é o problema. Não aparece espaço para dialogo ou apresentação de
outra ideologia dentro da obra. O mundo de Joker apesar de querer comentar sobre
sua injustiça, não contem uma ideia de justiça, ou como tal seria possível. Tenta
criticar a relação obsessiva com violência que os personagens se engajam, e as
elites as quais faltaria empatia, capacidade ou desejo de entender as massas.
Mas ao mesmo tempo tais estados, elites corruptas, e o povo sedento por
violência e destruindo tudo, quase que parecem estar certas, pois são a alternativa
possível. Uma única voz e sentimento parece estranhamente dominar o filme, que
não conhece nem parece capaz expressar essa empatia, ou algo além da violência,
que está argumentando contra. Chega a ser irônico o fato da obra em vários
momentos pregar a necessidade de entendimento e empatia.
A dificuldade temática que eu encontro em Joker é a
incapacidade de dialogo com um verdadeiro contraponto a sua mensagem. É uma
obra tão imersa no aspecto e atitude subversiva, muito contente com sua
transgressão política, mas que nunca tenta se perguntar por algo além da visão
dominante. O filme não quer apresentar o conflito social de forma
multifacetada, dando ideologias e sistemas de crenças para todos os lados. Os
ricos são simplesmente vilões irredimíveis, incapazes de se importar, e parecem
até sentir prazer em acabar com a classe trabalhadora. Não existe o ponto de
vista da pessoa que realmente admira e confia em homens como Thomas Wayne, não dando
nem a noção do como alguém assim realmente acaba com tal poder político. De
certa forma os lados e aspectos desse conflito sempre voltam ao mesmo ideal maniqueísta,
as massas sem rosto assustadas com a deterioração de suas qualidades de vida, e
presas numa raiva em face do sistema. Contra os milionários antagonistas
unidimensionais no topo, chamando o povo de palhaços, e dizendo que sabem o
melhor a se fazer. A elaboração do conflito social consistindo de mera escalada
da violência, que retorna ao mesmo fator, os pobres usurpam o nome pejorativo
que lhes foi dado e passam a se vestir de palhaços, praticando atos cada vez
mais extremos Os poderosos se voltam a aparelhos repressivos, a polícia, na
ideia de acabar com o problema sem resolver nenhuma de suas causas.
Não consigo extrapolar da história qualquer meio termo,
tentativa de elaborar o conflito e tópico que não volte a mesma moralização e
reprovação de certos aspectos da sociedade. Por isso chamo a exploração de
propaganda e considero essa forma de engajar com os temas insuficiente.
Trabalhos que realizam propaganda não tentam trazer perguntas difíceis,
questionamentos sobre assuntos e situações extremamente complexas na sociedade.
O autor ao se dispor a um verdadeiro questionamento, expressando inúmeras dúvidas
quanto a aspectos do tratamento de doentes mentais, relação obsessiva com violência,
e manifestação de conflito de classes, poderia chegar a criação de um trabalho
realmente revolucionário. Terminando por escolher ir exatamente na direção
contraria, Joker parece mais interessado nas respostas, trazer uma visão
simples e clara do conflito, suas causas, manifestações e dinâmicas. Em
simplesmente simplificar a realidade, trazendo mais respostas e confirmação, ao
não abrir espaço para uma verdadeira discordância e dialogo de ideais no
próprio filme, não considero as conclusões alcançadas particularmente significativas.
Por essas e outras razoes o discourse relacionado a Joker me
surpreende absurdamente. O filme é tratado como essa dark e revolucionaria
tomada em adaptação de HQS. E conquanto eu concorde que em termos de tom e
narrativas, o filme deve muito mais a filmes clássicos, como Taxi Driver, do
que historias de super-herói, em termos de temática ele não detém diferenças
significativas com a maioria do gênero. A própria controvérsia gerada pela obra
é intrigante, não vejo exatamente no que discussões sobre responsabilidade
social, e incentivo a violência são baseadas. Joker é um filme com não muito a
dizer, e o pouco que realmente diz dificilmente é revoltante, e controverso,
dessa forma. Talvez se ele dialogasse e explorasse a visão de mundo
especialmente ofensiva que muitos enxergam aqui, a obra teria algo mais
relevante a dizer quanto a sociedade. Não sendo esse o caso, considero isso
mais como algo negativo do que particularmente bom.
(Sério alguém me explica de onde vem essa controvérsia do filme)
Enfim por favor, note que eu posso estar errado quanto a
tudo que disse. Já tive ótimas conversas com inteligentes pessoas que adoraram
o filme, e ficaram fascinados com a forma e métodos que ela explora o estado de
alguém com psicose, combinado com a reação da sociedade nesse assunto. O
esforço e dificuldade em explorar temas é algo presente mesmo na minha própria
analise, nunca tenho certeza sobre se minha interpretação é a correta, e se
realmente pego a mensagem do filme. A necessidade de abrir para o dialogo, e
entender outro ponto de vista é infinitamente complicada, especialmente em uma
conversa sem interlocutor direto, como o de olhar uma obra de ficção. E não,
não me acho particularmente bom nessa pratica em nenhum momento. Por mais que
pareça que estou criticando pesadamente a obra, tal analise não é tanto uma
reflexão sobre o filme, quanto sobre a complexidade na interpretação e
transmissão de ideias. Assim espero estar apresentando conceitos que ajudem no
julgamento e realização desse processo.
(Joaquim Phoenix realmente merece um Oscar pelo que traz para esse filme)